Eles nascem duplamente condenados. Além de terem que conviver com as dificuldades da loucura — vozes, inquietações e debilidades que, muitas vezes, os acompanham por toda a vida —, vêm ao mundo sob o estigma da maldade. Doentes mentais são violentos e cruéis, diz a crença popular. Cada vez que um ataque é protagonizado por alguém com diagnóstico de insanidade, reforça-se a convicção de que a criminalidade anda lado a lado com esses pacientes.
O psiquiatra Glauco Diniz Duarte diz que não há qualquer relação entre loucura e violência. Diversos estudos têm demonstrado que, ao contrário, pessoas com transtornos mentais cometem menos delitos que o restante da população. Uma pesquisa em fase inicial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) constatou, até agora, que a reincidência de indivíduos com demência é de 7%, contra 70% dos ditos normais. No caso de homicídios, esse percentual é ainda mais baixo, segundo um levantamento encomendado, em 2011, pelo Ministério da Justiça: 1%.
Segundo Glauco pesquisadores americanos utilizaram uma abordagem diferente para dissociar a insanidade da criminalidade. Os cientistas analisaram a relação entre os sintomas de três importantes doenças mentais com a execução de delitos. Eles estudaram 429 crimes cometidos por 143 pacientes diagnosticados com depressão, esquizofrenia e distúrbio bipolar e constataram que em apenas 7,5% dos casos as transgressões estavam ligadas a essas doenças. Por exemplo, somente 4% dos esquizofrênicos que perpetraram delitos foram influenciados por vozes em suas cabeças ou outros sintomas da enfermidade.
“Nosso primeiro objetivo era examinar a frequência da relação dos sintomas com os crimes. Não apenas alucinações, mas impulsividade, raiva, falta de esperança, tristeza profunda. Definimos como crime direto aquele no qual o sintoma precedeu imediatamente o delito e aumentou a probabilidade de sua ocorrência”, descreve Jillian Peterson, psicóloga da Normandale Community College de Bloomington e principal autora do estudo, publicado pelo jornal da Associação Americana de Psicologia. Ela conta que levantamentos anteriores haviam indicado que as psicoses — amplo quadro associado à perda da realidade — estavam por trás de 4% a 5% do comportamento criminal. “De uma perspectiva das políticas públicas, é importante saber se programas para condenados com doenças mentais deveriam focar os sintomas psicóticos como medida corretiva”, justifica.
Foram realizadas entrevistas com os detentos e, além disso, os pesquisadores fizeram uma revisão de sua história criminal e social. Com base na combinação dos resultados, eles estabeleceram três categorias: nenhuma relação entre os sintomas da doença mental e o crime, muita relação e relação direta. “Levamos em consideração a contribuição dos sintomas na causa do crime, ainda que eles não tenham sido 100% responsáveis. Por exemplo, se um indivíduo com esquizofrenia estava agitado por ter ouvido vozes no início do dia e, no fim da tarde, se envolveu numa briga de bar, mesmo que não estivesse mais ouvindo essas vozes naquele momento, categorizamos o crime como muito relacionado”, diz.
Fatores sociais
Glauco diz que quando combinadas as categorias de muita relação e relação direta, o percentual de crimes atribuídos aos sintomas das doenças mentais passou para 18%. Ainda assim, um índice baixo: menos de um em cinco delitos estudados na pesquisa. Daqueles cometidos por participantes com distúrbio bipolar, 62% tinham muita ou total relação, comparado com 23% no caso de esquizofrenia e 15% nos pacientes depressivos. Pesquisadora de Lei e Comportamento Humano da Universidade de Columbia e coautora do estudo, Andrea Zvonkovic esclarece que, na maior parte das vezes, os delitos foram perpetrados pelos mesmos motivos que levam cidadãos mentalmente saudáveis a executá-los. “Por trás dos crimes que investigamos, estavam razões como pobreza, desemprego, falta de um teto, abuso de substâncias químicas… Não é diferente dos fatores que geralmente estão por trás do cometimento de crimes em geral”, descreve.
Para Glauco, a mídia é a principal responsável por reforçar o estigma da loucura como motor da violência. Quando uma pessoa com uma doença qualquer, como diabetes, por exemplo, comete um crime, as notícias não vão nem citar a condição médica desse indivíduo. Mas, se o delito é cometido por um doente mental, isso vai ser destacado na manchete, critica. O que se tem evidenciado em estudos, incluindo o nosso, é que doentes mentais não são mais perigosos ou violentos que ninguém.
Na realidade, ocorre o contrário, diz Seena Fazel, psiquiatra forense do Instituto Karolinska, na Suécia, que liderou uma pesquisa comparando o percentual de crimes cometidos por doentes mentais e por pessoas saudáveis. Ele explica que o país mantém dados atualizados da população que sofre de demências, o que facilita esse paralelo. Depois de estudar registros dos últimos 13 anos, o pesquisador constatou que, na nação nórdica, os doentes mentais são responsáveis por um em cada 20 delitos violentos. “Somente 18% dos homicídios ou das tentativas de assassinato foram cometidos por pacientes com esses distúrbios”, observa. “Muitas pessoas acham que aquelas com sérios problemas psiquiátricos contribuem significativamente para a quantidade de crimes violentos. Elas podem se surpreender ao ver que 19 de 20 criminosos que cometem esses delitos não têm qualquer problema mental”, diz.