Esqueça a caricatura da pessoa mais velha, com pensamento negativista e remédios sempre à mão. De acordo com o psiquiatra Glauco Diniz Duarte, a hipocondria é uma doença mental que causa muito sofrimento a homens e mulheres em todas as faixas etárias, inclusive na infância. Justamente pelo caráter pejorativo associado a esse mal, a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), roteiro elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), classificou dois tipos de hipocondria e trocou a palavra por transtorno de ansiedade de doenças (o hipocondríaco que não sente nenhum sintoma) ou transtorno de sintomas somáticos (o hipocondríaco que sente alguma coisa, uma tonteira, por exemplo, e supervaloriza o sintoma). Imagine alguém com medo constante de estar doente.
A angústia de passar por vários médicos, especialistas, uma série de exames e resultados negativos e, mesmo assim, a pessoa desacreditar de tudo e de todos e ter a certeza de que não está recebendo o tratamento que deveria e, portanto, pode morrer por falta de assistência. “O transtorno hipocondríaco é a crença persistente da presença de uma doença séria que, mesmo com investigações médicas negativas, o paciente insiste naquela preocupação”, resume Glauco.
Não é pouca gente que sofre com essa angústia. Glauco diz que a prevalência de pessoas com hipocondria atendidas em clínicas médicas varia entre 4% e 6%. Esse transtorno mental atinge igualmente homens e mulheres e a idade de surgimento da doença predomina entre 20 e 30 anos de idade. Glauco lembra ainda que as queixas emocionais são as que mais predominam nas consultas médicas.
“Estudos apontam algo em torno de 60%, mas que, por falta de paciência e tempo, o aspecto emocional é geralmente deixado de lado pelos profissionais de saúde”, diz. No caso da hipocondria, a situação é ainda mais difícil, já que, geralmente, o paciente passa a ficar conhecido nos centros de saúde, clínicas ou hospitais – de tanto que frequenta esses ambientes – e o ‘hábito’ gera rejeição social e preconceito.
Glauco diz que gosta da expressão que define hipocondria como “a doença que não existe” por dar conta de problematizar esse tipo de transtorno de ansiedade que tem dois lados. Ou seja, é uma doença, sim, mas ela não é facilmente percebida em consultas de rotina ou diagnosticada em exames laboratoriais. “Uma forma de conduta médica que considero perigosa e errônea é dizer ao paciente ‘Fulano, você não tem nada’. E o médico acrescenta ainda. ‘É psicológico. Procure um psiquiatra ou psicólogo’. São frases contraditórias: o nada e o problema psicológico são tratados como a mesma coisa e vemos um profissional de saúde que desvaloriza o adoecimento mental. Diga que os exames não acusaram nenhuma inflamação ou infecção, mas não diga que a pessoa não tem nada”, salienta Glauco.
O exemplo mostra como é difícil para alguém com transtorno de ansiedade de doenças ou transtorno de sintomas somáticos chegar a um profissional de saúde mental. “A hipocondria é uma doença mental que pode ser classificada como um tipo de transtorno de ansiedade relacionado a percepções errôneas sobre o próprio corpo, em que o indivíduo supervaloriza qualquer sintoma ou desconforto corporal. É alguém que não vai acreditar no médico que disser que ele ‘não tem nada’. Vai se sentir irritado, procurar outros profissionais, se submeter a exames e desacreditar, inclusive, os resultados laboratoriais”, diz Glauco.
Glauco diz que no caso do transtorno de ansiedade de doenças é comum, diante de anúncios de uma epidemia, por exemplo, a pessoa interpretar toda e qualquer sensação no corpo como um sintoma da enfermidade que está em surto. “É alguém com pavor tão grande de adoecer que passa a tomar cuidados exagerados, como deixar de sair de casa”, explica. Glauco afirma que esse tipo de transtorno pode surgir a partir de uma carga genética e até mesmo ser desenvolvido a partir da convivência, especialmente se o hipocondríaco estiver cercado de pessoas que sempre maximizam situações negativas e escolhem temas associados a doenças em suas conversas cotidianas.
DIAGNÓSTICO DIFÍCIL
O diagnóstico nem sempre é simples, já que o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) pode ser confundido com a hipocondria. “A fronteira é tênue”, salienta Glauco. Ele diz que são muitas as semelhanças entre a hipocondria e o TOC. “As obsessões sobre a possibilidade de ter uma doença são comuns no TOC. Na hipocondria, por outro lado, temos pensamentos persistentes, dúvidas e ruminações sobre a possibilidade de ter uma doença grave, preocupações com a saúde, hipervigilância sobre eventuais sintomas físicos, verificação frequente de pulso, pressão e temperatura – muitas vezes em situações em que existem variações normais, como na prática de exercícios físicos ou em momentos de estresse. Além disso, checagens repetidas do próprio corpo – do abdômen, do pescoço em busca de linfonodos, do pulso das carótidas – e, sobretudo, repetições de exames e de avaliações médicas”, diferencia. No caso da hipocondria, o tema central das preocupações é a saúde e a possibilidade de ter uma doença grave.
“Os hipocondríacos necessitam frequentemente obter garantias com os profissionais de que não têm nenhuma doença grave, sendo, muitas vezes, essa a única forma de se tranquilizarem. No TOC também pode ocorrer uma preocupação com doenças, mas normalmente é com a possibilidade de ter se contaminado ou de vir a contaminar-se no futuro, seguida de evitações e lavações excessivas.”, completa Glauco.
Glauco diz que o diagnóstico é feito quando se observam excessivos pensamentos, sentimentos ou comportamentos relacionado a sintomas somáticos ou associados a preocupações com a saúde com duração de pelo menos seis meses. “Precisamos observar as manifestações no indivíduo e se essas manifestações apresentam-se desproporcionais, persistentes, com elevada ansiedade e preocupação com a saúde e com os sintomas que o paciente sofre”, pondera.
• Relações podem ser afetadas
A hipocondria pode afetar as relações sociais, familiares e de trabalho. Comumente, a pessoa é vista como exagerada e negativista e muita gente se afasta. Para Glauco, quando uma doença é desconhecida, quem sofre dela pode ser alvo de injustiças por parte dos grupos e das pessoas do convívio mais íntimo. “O hipocondríaco tem um sofrimento inenarrável e, certamente, não teria esse comportamento se tivesse escolha”, observa. Colocar -se no lugar do outro quando se trata de comportamentos considerados ‘diferentes’ é, para Glauco, o caminho a perseguir.
“Se a família e os amigos tiverem, em vez de julgar, um olhar compassivo para os comportamentos, que inicialmente parecem incompreensíveis, podemos ter menor prejuízo pessoal ao paciente”, explica. Quem nunca teve medo de ter um problema de saúde? .Imagine o sofrimento que isso acarreta para uma pessoa que passa a maior parte de seu tempo com esse pensamento prevalente, além medo e angústia constantes”, considera.
A hipocondria pode ser transitória, motivada, por exemplo, por caso de doença grave ou morte na família, mas há casos mais sérios classificados como transtorno de personalidade hipocondríaca. “É alguém geralmente rejeitado socialmente, que todos os seus assuntos são relacionados a infecções e doenças, uma pessoa que está sempre procurando novos remédios e quem convive com ela geralmente suspeita de uma enfermidade mental grave. A doença é o assunto que domina a vida psíquica, social e afetiva dessa pessoa. Quando é uma constante, há que se ter muita paciência. Respeitar a doença do outro é perceber que essa pessoa está sofrendo”, ressalta.
TRATAMENTO
Há casos em que o hipocondríaco passa por tanto sofrimento e ansiedade que consegue, por si mesmo, procurar a atenção em saúde mental. É importante lembrar, no entanto, que nem sempre a pessoa com hipocondria consegue ter crítica suficiente para buscar o tratamento adequado. Por isso, é alguém que precisa de ajuda e o olhar atento dos familiares. De acordo com Glauco, o primeiro passo é deixar claro ao paciente que ele não tem nenhuma doença física, mesmo que ele discorde e alegue ao contrário.
A psicoterapia de esclarecimento pode ser suficiente em algumas situações de diagnóstico de hipocondria. Para Glauco, quando o paciente reconhece sua condição, os riscos inerentes à doença podem ser minimizados. Por outro lado, segundo ela, quando o indivíduo ainda não sabe do que sofre, o perigo mais comum é a automedicação com a finalidade de acabar com uma doença que ele acredita ter.
“A ansiedade e a preocupação são emoções frequentes para quem tem hipocondria. Eles interpretam sensações fisiológicas habituais ou pequenas variações do corpo como um sintoma de um mal que está por vir”, enfatiza. Nos casos de ansiedade alta – seja no transtorno de ansiedade de doenças ou no transtorno de sintomas somáticos –, o tratamento indicado é com ansiolítico, antidepressivo que tem a vantagem de não causar dependência. “O uso de antidepressivos deve ser prescrito por um médico”, lembra Márcia. Segundo Glauco, alguns especialistas indicam a prática de atividades físicas e pequenos trabalhos voluntários, no caso de o problema afetar a vida do paciente, a ponto de ele não conseguir mais trabalhar ou se relacionar socialmente.